quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Críticos virtuais

Aleluia! A tecnologia nos proporcionou a participação política sem comprometimento. Estou desorientado. Sou partícipe vergonhoso da classe dos críticos virtuais. Omisso dos que propagam que algo tem de ser feito sem pessoalmente fazê-lo. Acomodado na afirmativa de que “quem quer mudar não pode, e, quem pode, não quer”. Visto, portanto, ao menos parcialmente, a carapuça da omissão.

Jurei mil vezes não tomar mais conhecimento dos noticiários. Prometi não sentir mais indignação com aquilo que não posso consertar. Propaguei que nem mesmo amo meu país, instituição etérea que sequer sabe que existo, exceto pelo CPF que controla para arrecadar malversados impostos. Citei mil vezes John Kennedy: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer pelo seu país”. Hoje esboço um sorriso de escárnio quando ouço a frase.

Mas... como não sentir indignação? Como conviver com os desconhecidos que defecam em frente à porta da minha casa, sem que eu limpe a sujeira, apenas porque não fui eu a defecar lá? Afinal, é lá que eu moro.

Sinto-me num país de estúpidos, mas sinto-me também um pouco estúpido. As perguntas me assaltam e não consigo respondê-las. O que aconteceu? Com toda a desorientação e vergonha e omissão e acomodação, recorro ao que razoavelmente sei fazer: escrever.

Como fomos parar onde estamos? Por que me assalta a dúvida entre optar pela democracia que tanto nos afundou ou pelo regime militar que me mantinha calado? As liberdades duramente conquistadas não foram usadas irresponsavelmente, justamente por aqueles que empunhavam suas bandeiras? A democracia não foi usada para tolher a própria democracia? Isso faz algum sentido?

Eu voto, mas não sei se meu voto está sendo honestamente apurado. Volto os olhos para o regime militar e vejo que mesmo ele, embora com a faca e o queijo na mão, parece ter sido mais zeloso no escrutínio das urnas.

Se penso em filhos e netos, me inclino a aceitar a tese de que a democracia é o menos ruim dos regimes. Que ela só se constrói praticando democracia e, aí, quase sinto-me disposto e enfrentar as mazelas que ela traz. Já se penso nos anos que me restam, inclino-me a abrir mão de certas liberdades em troca de um pouco mais de segurança, educação, estabilidade e menos mazelas.

Vejo os políticos, que se dizem tão democratas, obcecados em dar rasteiras em seus adversários, em regra tão bandidos quanto eles próprios, sequiosos tão somente em alcançar uma tábua de salvação que os tire das garras de uma Justiça já rota por si só. Dão as costas aos interesses do país. Auferem polpudos salários, revoltantes mordomias. Não sobreviveriam um dia com o salário com que a massa dos seus eleitores têm de sobreviver por um mês.

Vi, ainda ontem, o vídeo dum garotinho dos seus oito anos, atacado por uma obsessão proveniente não sei de que nem de onde, arruinando uma sala de aula, sem que qualquer dos adultos presentes ousasse sequer segurá-lo. Quando um deles fez menção de contê-lo, foi desaconselhado pelos demais. A diretora, presente, parece ter sido punida por filmar o pequeno algoz. Foi por esses “direitos” que lutamos?

Depois, um jovem assaltante detido pela polícia, gritando “Não encosta a mão em mim que sou de menor!” Dias antes fora fotografado posando com duas submetralhadoras na mão. Seu histórico: treze passagens pela polícia. Em todas elas, foi solto. Devo de fato condenar-me em preferi-lo morto?

Assisto aos vereadores do meu município proibindo seja produzido o foie gras. Elogiável, não carecesse a comunidade de tantos cuidados básicos, todos eles saltando aos olhos de qualquer cidadão medianamente informado.

Vejo estudantes, aos dezesseis anos, tendo que fazer um trabalho sobre como as esponjas defecam e onde se localiza o seu ânus. Não aprenderam ainda a diferença entre cessão, sessão, secção e seção. Não sabem calcular o troco que recebem quando compram seus badulaques, metendo-o no bolso sem conferir, com medo de que possam reclamar sem razão, porque não aprenderam matemática suficiente para tal.

Desanimei cedo da advocacia, observando os anos que se passavam e que ainda se passam para um juiz dar um “despacho de mero expediente”, não obstante a atual informatização dos procedimentos que há vinte ou trinta anos eram feitos quase que manualmente.

Quando um sociólogo estudioso chegou à presidência da república, iniciando debilmente algumas correções de rumo com medidas estruturais, assisti abestado suceder-lhe um semianalfabeto. A este, uma tresloucada que não consegue formular, de improviso, cinco frases com sentido. Foi para isso que nos anos 70 me insurgi contra a “ditadura” e nos anos 80 engrossei as fileiras do “Diretas Já”?

É concebível que amemos um povo que escolhe tão irresponsavelmente os carrascos que o conduzem ao cadafalso? Qual o valor efetivo do voto consciente, se a massa propositadamente mantida desinformada é que dita os resultados dos eleitos? Qual a diferença em acreditar no povo e nos messias que escolhe ou em acreditar em Papai Noel? Em que época da história algum país progrediu sendo governado por líderes mais incapacitados que seus próprios liderados?

Há meses, após anos apenas contestando virtualmente, através de alguns escritos, os abusos e discrepâncias contra as quais me insurgia, decidi, ainda que debilmente, agir. Participei de uma audiência pública que discutiria o aumento do número de vereadores de meu município, cada um já com direito a um carro custeado por recursos públicos. Enviei meu discurso previamente para mais de duzentas pessoas, tentando sensibilizá-las a comparecer para engrossar as fileiras da indignação que tomava conta da cidade. Apenas três ou quatro compareceram. O que faziam os outros? Seria a indignação somente minha?

Participei de clubes de serviço por décadas. Quando propus que se manifestassem publicamente, seja contra desmandos e omissões de governantes, seja a favor dos raros acertos, verifiquei que majoritariamente preferiam a cômoda omissão, com a afirmativa de que “não devemos nos meter em política”. Contudo, nas rodinhas de conversa informais que antecediam as reuniões e nos papos posteriores regados a uma cervejinha, as lamúrias à política e as soluções para os grandes problemas nacionais abundavam. Durante as reuniões se falava muito em cidadania, em patriotismo e em ética. É possível começar alguma melhoria desta forma?

A constituição federal diz que a família será constituída por homem e mulher. Os ministros da nossa mais alta corte de justiça “interpretaram” que ela poderia ser constituída também por dois homens ou por duas mulheres. Como é possível interpretar “mulher” como sendo “homem” e “homem” como sendo “mulher”? Respondo: tudo em nome do direito à busca da felicidade! E se dois homens e duas mulheres decidirem que apenas convivendo em quatro, poderão ser felizes? Quanto demorará para dizer que a felicidade é que vale e se instituir a poligamia? Virtude para mim é virtude. Crime para mim é crime. Quanto tempo levará para esta mesma corte interpretar que “crime” pode ser “virtude” e que “virtude” pode ser “crime”? Ainda vale o que está escrito na constituição? Ainda valem as definições que os vocábulos têm nos dicionários? Algum deles, em sua conceituação, ensina que, onde se lê “mulher”, pode se ler “homem”?

Será isso mesmo uma democracia? Vale a pena ao razoavelmente letrado amar seu país e lutar por ele? A paz mundial que todos almejam não começa praticando a paz individual? E esta não subentende procurar, pelo diálogo e pela compreensão de pontos de vista diversos chegar ao consenso, não à ruptura? Como pode o motorista que vocifera no trânsito sonhar com a paz entre os povos, quando sequer respeita ao que trafega ao seu lado?

E, ao concluir tantos raciocínios e contemplar tantas perguntas sem respostas eloquentes, desorientado, não sem certa vergonha, inclino-me a cruzar os braços. A aceitar não remar contra a maré. A concordar que, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. A preservar o meu lado exclusivamente. A não reagir demasiado contra essas coisas todas e ficar quietinho no meu canto. Envergonhado, sim. De olhos fechados, sim. Mas, de olhos fechados, um pouco alheio ao que o homem, em milhares de anos de história, não alcançou: ética. Vergonhosamente convencido de que não será nos anos que me restam que o alcançará. Agradecendo respeitosamente aos poucos que lutaram por melhorias no passado e torcendo para que, ao contrário da geração presente, se conquistem mais melhorias no futuro.

O consolo barato: Os EUA, considerado um dos países mais democráticos da atualidade, reconheceu ter torturado os presos, suspeitos de participar do atentado às torres gêmeas. A constituição deles, tão decantada, proíbe isso. Somos todos quase iguais perante a lei.

Roberto Curt Dopheide
Outubro 2015

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